Artigo

Irmandades literárias e transatlânticas

Por Eduardo Ritter - Professor do Centro de Letras e Comunicação da UFPel
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Dois autores de países com histórias e situações bem distintas, com origens diferentes e idades destoantes que escrevem dois romances com muito em comum. Por coincidência, li praticamente em sequência as obras Torto arado e Reparação. A primeira é de autoria do escritor e doutor em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia, Itamar Vieira Junior. Nascido em Salvador, tem quase a minha idade: 44 anos. Já a segunda é de autoria do britânico Ian McEwan, nascido em Aldershot, na Inglaterra, e que tem idade para ser meu pai e do Itamar: 75 anos. Enquanto a narrativa de Torto arado se passa na fictícia Água Negra, interior da Bahia, em meados do início do século 20, Reparação tem como pano de fundo uma casa de campo inglesa dos anos 1930 e 1940. De um lado, a luta do povo negro. De outro, a aristocracia britânica. O que, então, pode haver de comum em narrativas que ocorrem em lugares tão diferentes, astuto leitor?

Eu poderia ser cruel, como às vezes sou com meus alunos, e dizer para você ler as obras para descobrir. Aliás, sugiro que faça isso. No entanto, sou um colunista bonzinho e vou contar para você. O cerne da história toda, em ambos os romances, é a fortíssima ligação entre duas irmãs. E mais: ambas participam de acontecimentos importantes que não apenas alteram as suas vidas para sempre, mas também as relações entre elas.

Comecemos, portanto, com Torto arado. As duas personagens principais do romance são as irmãs Bibiana e Belonísia. Quando crianças, elas cometem uma travessura infantil (alerta de spoiler): mexem na mala da avó e encontram uma faca. As irmãs ficam impressionadas com aquele pedaço de metal, que nunca tinham visto antes, e ambas decidem passar a língua no objeto. Uma delas, porém, acaba tendo a língua completamente decepada e, a partir de então, Vieira Júnior faz um suspense por algumas páginas confundindo o leitor sobre qual das duas perdeu a língua. Tal acidente muda completamente a vida delas, que se passa no contexto pós-abolição, ou seja, no momento histórico em que o racismo estrutural foi enraizado na alma e no coração do Brasil. "Quando deram liberdade aos negros, nosso abandono continuou. O povo vagou de terra em terra pedindo abrigo, passando fome, se sujeitando a trabalhar por nada. Se sujeitando a trabalhar por morada. A mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade. Mas que liberdade?" (p.220), questiona um dos personagens. Mas bueno, aí já é tema para outra coluna.

Já em Reparação ocorre um evento surpreendente envolvendo Briony, uma jovem de 13 anos. Ela presencia uma série de episódios confusos que envolvem sua irmã mais velha, Cecília, e Robbie, um amigo da família. Como resultado das ações mal interpretadas de Briony, o relacionamento emergente entre Cecília e Robbie é destruído antes mesmo de começar. Adicionalmente, as consequências das atitudes de Briony levam Robbie à prisão e, posteriormente, ao campo de batalha da Segunda Guerra Mundial. Este incidente novamente mostra como uma relação entre irmãs pode ser profundamente impactada por eventos inesperados durante sua infância ou adolescência - bem como as suas próprias vidas individualmente.

Em ambos os romances as personagens buscam reparação tanto de maneira individual quanto coletiva, uma vez que ambos os livros exploram extensamente as consequências de seus incidentes centrais. As duas narrativas escritas por autores de origens tão diferentes, estimulam no leitor um processo de identificação que é ao mesmo tempo pessoal e compartilhado. Por essas e por outras que sugiro que estudioso leitor aprecie as duas obras.

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